segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017



COMEMORAÇÃO DO CARNAVAL
DEIXA TUDO E LÊ E SENTA-TE AQUI E LÊ


A equipa da Biblioteca fez uma leitura muito animada do texto “A Cidade das Pessoas Carimbadas”, relativa à atividade “Deixa Tudo e Lê” e “Senta-te Aqui e Lê”.









DEIXA TUDO E LÊ…                24 de fevereiro
A cidade das pessoas carimbadas adaptado de António Cardoso Ferreira
                "Era uma vez uma cidade onde todas as pessoas tinham meia dúzia de carimbos estampados na cara: carimbos de várias cores e diferentes marcam, escarrapachados na cara, no queixo ou nas bochechas.
                Havia carimbos postos pelos pais aos filhos desde pequeninos, outros vinham dos vizinhos, dos professores, dos médicos ou dos colegas de trabalho. Podiam ser carimbos de muitas qualidades. Por exemplo, algumas crianças ficavam com um carimbo azul que dizia que eram filhas de pessoas importantes e por isso deviam também ser tratadas como pessoas importantes. Outras recebiam um carimbo castanho a dizer que eram filhos de gente sem importância e não devia dar-se-lhes nenhuma atenção especial porque iriam também ser gente sem importância.
                Algumas crianças recebiam um carimbo dourado assinalando que na sua família havia pessoas muito inteligentes e outras recebiam um carimbo roxo a avisar que tinham nascido numa família de gente estúpida e por isso também elas iriam reprovar na escola várias vezes.
                Claro que havia muitas outras qualidades de carimbos, para marcarem os doutores e os ignorantes, os da direita e os da esquerda, os honestos e os aldrabões, os putos e os viciados, fossem estes alcoólicos, toxicodependentes ou refugiados, em suma pessoas "boas" e pessoas "más".
                Uma coisa importante é que aqueles carimbos, uma vez postos, ficavam para sempre e havia pessoas que todos os dias se olhavam ao espelho várias vezes, avivavam certos sinais e faziam por viver de acordo com os carimbos, bonitos ou feios, que tinham na cara. Também havia gente que procurava disfarçar os sinais de certos carimbos, mas por mais que as pessoas tentassem, os outros continuavam a atirar-lhes à cara com os carimbos que lhes tinham posto anteriormente e todos acabavam por se resignar a viver de acordo com os carimbos que traziam.
                Até que um dia voou sobre aquela cidade o Anjo da Liberdade: é um anjo parecido com uma nuvem, que atravessa o céu muito devagar como se fosse arrastado por uma brisa.
                O Anjo da Liberdade olhou com atenção para aquelas pessoas e ficou triste porque estavam todas presas aos carimbos que traziam, sem que ninguém tivesse coragem para tentar mudar e, enquanto ia voando devagar, pensava em como podia ajudar aquela cidade sem fazer batota, porque não sei se perceberam, mas os milagres são uma batota, pois fogem às regras do jogo que é a vida… e o Anjo queria que as pessoas fossem livres, que escolhessem o caminho de serem livres e varressem as teias que as prendiam aos carimbos.
                Então o anjo descobriu: em vez de tentar fazer batota, podia baralhar e dar de novo as cartas do jogo da vida. As pessoas que optassem depois.
                Pediu ajuda a outras nuvens para que fizessem cair sobre aquela cidade uma chuva especial.
                Estava-se no mês de maio e costuma dizer-se que em maio a chuva cheira a rosas porque traz consigo o perfume das flores, mas aquela chuva tinha um cheiro tão agradável e tão intenso como as pessoas nunca tinham experimentado. Eram pingos leves a cair devagar e apetecia, no calor morno da tarde, ficar ali, no meio das ruas, praças e jardins, a saborear a chuva que caía ao longo de horas e horas. Era uma sensação tão boa que as pessoas se chamavam umas às outras porque tinham gosto que todas experimentassem aquela maravilha, e os avós traziam os netos, os filhos iam buscar os pais, os amigos e os vizinhos e quando a noite chegou todas as pessoas andavam cá fora à chuva, molhadas e alegres. Trouxeram música, fizeram fogueiras, como na altura dos santos populares, e toda a gente começou a dançar, a cantar e a viver a festa daquela chuva fresca numa noite de maio.
                E as pessoas importantes dançaram com as pessoas sem importância e não se importaram com isso. Tão pouco se importaram os puros e os inteligentes quando cantaram de braços dados com os estúpidos, os toxicodependentes, os alcoólicos e os refugiados - assim como também aconteceu que doutores e ignorantes, honestos e aldrabões partilharam uns com os outros os comes-e-bebes, as danças e as cantorias.
                Assim durou a festa até de madrugada, sem que ninguém se cansasse ou desistisse. quando o sol nasceu e iluminou de novo a cidade é que as pessoas repararam, ao olharem umas para as outras, que todos os carimbos tinham desaparecido das suas caras, lavadas pela chuva.
                E puseram-se a rir à medida que percebiam que os carimbos não eram necessários e que cada um tinha o direito de começar de novo, em cada dia, à procura de construir o seu próprio caminho, sem que os carimbos lhe traçassem o destino. Era possível ser diferente a partir de agora por muitos disparates que já tivessem cometido. Por outro lado, os que tinham um passado com coisas boas, não se podiam encostar a isso, porque, em cada dia novo, tinham de continuar a provar a si próprios e aos outros que eram capazes de continuar assim...
                Passado algum tempo, o Anjo da Liberdade voltou a sobrevoar a cidade e sorriu de alegria. É verdade que os carimbos continuavam a existir, mas estavam todos arrumados no fundo das gavetas e ninguém lhes voltou a tocar.
                Acaba aqui a história da cidade das pessoas carimbadas que ficaram livres dos carimbos.
                Já agora... Quando cada um de nós se vir ao espelho ou olhar para os outros na rua, repare bem se há aí marcas de carimbos nas caras."

A Biblioteca sugere a leitura do livro “Um Sonho de Rapaz”, da autoria de Roberto Edgar Silva, aluno do 9.º ano da Escola Básica e Secundária de Machico, na Madeira e Teresa Cláudia Sousa, 1º prémio de Literatura Infanto juvenil Inclusiva, de 2014.