SEMANA DA LEITURA
ESCOLA EB 2/3
"JOÃO AFONSO DE AVEIRO"
Sugestões de Leituras:
IKEA - ENLOUQUEÇA VOCÊ MESMO
Os problemas dos
clientes do IKEA começam no nome da loja. Diz-se "Iqueia" ou "I quê
a"? E é "o" IKEA ou "a" IKEA"? São ambiguidades
que me deixam indisposto. Não saber a pronúncia correta do nome da loja em que
me encontro inquieta-me. E desconhecer o género a que pertence gera em mim uma
insegurança que me inferioriza perante os funcionários. Receio que eles
percebam, pelo meu comportamento, que julgo estar no "I quê a",
quando, para eles, é evidente que estou na "Iqueia".
As dificuldades, porém,
não são apenas semânticas mas também conceptuais. Toda a gente convencida de
que o IKEA vende móveis baratos, o que não é exatamente verdadeiro. O IKEA
vende pilhas de tábuas e molhos de parafusos que, se tudo correr bem e Deus
ajudar, depois de algum esforço hão de transformar-se em móveis baratos. É uma
espécie de Lego para adultos. Não digo que os móveis do IKEA não sejam baratos.
O que digo é que não são móveis. Na altura em que os compramos, são um puzzle.
A questão, portanto, é saber se o IKEA vende móveis baratos ou puzzles caros.
Há dias, comprei no IKEA um móvel chamado Besta. Achei que combinava bem com a
minha personalidade. Todo o material de que eu precisava e que tinha de levar
até à caixa de pagamento pesava seiscentos quilos. Percebi melhor o nome do
móvel. É preciso vir ao IKEA com uma besta de carga para carregar a tralha toda
até à registadora. Este é um dos meus conselhos aos clientes do IKEA: não vá
para lá sem duas ou três mulas. Eu alombei com a meia tonelada. O que poupei
nos móveis, gastei no ortopedista. Neste momento, tenho doze estantes e três
hérnias.
É claro que há aspetos positivos: as
tábuas já vêm cortadas, o que é melhor do que nada. O IKEA não obriga os
clientes a irem para a floresta cortar as árvores, embora por vezes se sinta
que não faltará muito para que isso aconteça. Num futuro próximo, é possível
que, ao comprar um móvel, o cliente receba um machado, um serrote e um mapa de
determinado bosque na Suécia onde o IKEA tem dois ou três carvalhos debaixo de
olho que considera terem potencial para se transformarem numa mesa-de-cabeceira
engraçada.
Por outro lado, há problemas de solução
difícil. Os móveis que comprei chegaram a casa em duas vezes. A equipa que
trouxe a primeira parte já não estava lá para montar a segunda, e a equipa que
trouxe a segunda recusou-se a mexer no trabalho que tinha sido iniciado pela
primeira. Resultado: o cliente pagou dois transportes e duas montagens e
ficou com um móvel incompleto. Se fosse um cliente qualquer, eu não me importaria.
Mas como sou eu, aborrece-me um bocadinho. Numa loja que vende tudo às peças
(que, por acaso, até encaixam bem umas nas outras) acaba por ser irónico que o
serviço de transporte não encaixe bem no serviço de montagem. Idiossincrasias
do comércio moderno.
Que fazer, então? Cada cliente terá o seu modo de reagir. O meu é este:
para a próxima, pago com um cheque todo cortado aos bocadinhos e junto um rolo
de fita gomada e um livro de instruções. Entrego metade dos confetti num dia e a outra metade no outro. E os
suecos que montem tudo, se quiserem receber.
NOTA:
INGVAR KAMPRAD, o dono e
fundador da icónica marca de mobiliário sueca IKEA, morreu aos 91 anos, no dia
27 de janeiro de 2018.
ARTIGO DE OPINIÃO
DE:
A CONSEQUÊNCIA DOS SEMÁFOROS
"Odeio semáforos. Em primeiro lugar porque estão sempre
vermelhos quando tenho pressa e verdes quando não tenho nenhuma, sem falar do
amarelo, que provoca em mim uma indecisão terrível: travo ou acelero? Travo ou
acelero? Acelero, depois travo, volto a acelerar e ao travar de novo já me
entrou uma furgoneta pela porta, já se juntou uma data de gente na esperança de
sangue, já um tipo, de chave-inglesa na mão, saiu da furgoneta a chamar-me seu camelo,
já a companhia de seguros me propõe calorosamente que a troque por uma rival
qualquer, já não tenho carro por uma semana, já me ponho na borda do passeio a
fazer sinais de náufrago aos táxis, já pago um dinheirão por cada viagem e,
ainda por cima, tenho de aturar o pirilampo mágico e a Nossa Senhora do
alumínio do tablier, o esqueleto de plástico pendurado do retrovisor, o
autocolante da menina de cabelos compridos e chapéu ao lado do aviso «Não fume
que sou asmático», proximidade que me leva a supor que os problemas
respiratórios se acentuaram devido a alguma perfídia secreta da menina que não
consigo perceber qual seja.
A segunda e principal razão que me leva a odiar os semáforos é
porque de cada vez que paro, me surgem, no vidro da janela, criaturas
inverosímeis: vendedores de jornais, vendedores de pensos rápidos, as senhoras
virtuosas com uma caixa de metal ao peito que nos colam autoritariamente sobre
o coração o caranguejo do cancro, os matulões da Liga dos Cegos João de Deus
nas vizinhanças de um altifalante sobre uma camioneta com um espadalhão novo em
folha em cima, o sujeito digno a quem roubaram a carteira e que precisa de
dinheiro para o comboio do Porto, o tuberculoso com o seu atestado
comprovativo, toda a casta de aleijões (microcefálicos, macrocefálicos, coxos,
marrecos, estrábicos divergentes e convergentes, bócios, braços mirrados, mãos
com seis dedos, mãos sem dedo nenhum, mongoloides, dirigentes de partidos
políticos, etc.), sem contar o grupo de Bombeiros Voluntários que necessita de
uma ambulância, os novos finalistas de Coimbra, de capa e batina, que decidiram
fazer uma viagem de fim de curso à Birmânia, e a rapaziada da heroína que não
conseguiu roubar nenhum leitor de cassetes nesse dia.
Resultado: no primeiro semáforo já não tenho trocos. No segundo já
não tenho casaco. No terceiro não tenho sapatos. No quinto estou nu. No sexto
dei o Volkswagen. No sétimo aguardo que a luz passe a encarnado para assaltar
por meu turno, de mistura com uma multidão de bombeiros, de estudantes, de
drogados e de microcefálicos, o primeiro automóvel que aparece. Em média, mudo
cinco vezes de vestimenta e de carro até chegar ao meu destino, e quando chego,
ao volante de um camião TIR, a dançar numas calças enormes, os meus amigos queixam-se
de eu não ser pontual.
António Lobo Antunes,
Livro de crónicas, 2ª ed.,
Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1999, pp.21-22
VOCABULÁRIO
1 Inverosímil:
improvável, que não tem aparência de verdade. 2 Aleijão: pessoa com grave
deformação física. 3 Microcefálico: pessoa com massa encefálica diminuta. 4
Macrocefálico: pessoa com desenvolvimento excessivo da cabeça. 5 Estrábico:
pessoa que tem estrabismo, uma doença ocular em que os raios visuais se desviam
de modo a impedir as pupilas de se moverem ou verem simultânea e regularmente.
6 Bócio: aumento patológico do volume da tiroide. 7 Mongoloide: expressão
popular referente a quem é portador de síndrome de Down.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES 1942-...Psiquiatra.
Autor de obras como Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (1979), A
explicação dos pássaros (1981), Auto dos danados (1985), As naus (1988), Manual
dos inquisidores (1996), Não entre tão depressa nessa noite escura (2000), Segundo
livro de crónicas (2002), Comissão das lágrimas (2011), entre muitas outras.
Proposta de escrita
A vida quotidiana é
vista por muitos como difícil. As razões são inúmeras: o trânsito, a falta de
tempos livres, o tempo de descanso reduzido... Produz um texto de opinião,
tendo em conta os tópicos apresentados. O texto deverá ter uma introdução, um
desenvolvimento e uma conclusão. • Apresentação do tema a discutir. • Indicação
da posição relativamente ao tema. • Exposição de dois argumentos que reforcem a
posição pessoal. • Referência de exemplos da vida quotidiana que comprovem os
argumentos. • Retoma da posição defendida.
CARA
DE CAMELO ENGASGADO
Quando
se zangava e se punha amuada, a minha amiga Sara ficava com cara de camelo
engasgado.
Eu
nunca vi um camelo engasgado. Nem um camelo constipado. Nem um camelo que não
tenha aquela cara de camelo dos camelos que estão no Jardim Zoológico e nos
filmes.
Mas quando a minha amiga Sara ficava
zangada, toda a gente olhava para ela, mesmo os que nunca tinham visto um
camelo, percebiam logo que ela estava com cara de camelo engasgado.
O pior é que ela não gostava nada que
lhe dissessem isso. E quando lho diziam, a Sara ainda se zangava mais e
protestava e barafustava e ficava cada vez mais com cara de camelo engasgado.
Um dia, estava ela muito amuada e eu disse-lhe que estava com cara de camelo daqueles
mesmos muito engasgados. E ela barafustou, protestou, rezingou, como era de
costume. E a cara ia ficando cada vez pior.
- Eu não estou com cara de camelo
engasgado! Eu não estou com cara de camelo engasgado! Eu não estou com cara de
camelo engasgado! – Gritava ela.
Eu peguei nela por um braço e levei-a ao
espelho. Ela ficou muito admirada a olhar para o espelho. Olhou para mim, olhou
para o espelho, voltou a olhar para mim e voltou a olhar para o espelho e, por
fim, desatou a rir à gargalhada. – Eu estou mesmo com cara de camelo engasgado!
Para meu espanto, a Sara saiu para a rua
a rir e a pular e a dizer a toda a gente: - Olhem para mim! Já viram? Que
engraçado! Eu estou cá com uma cara de camelo engasgado!
Pela primeira vez ninguém reparou que a
Sara ficava com cara de camelo engasgado. Até acharam que ela estava com uma
cara muito divertida.
Não sei se foi ela que nunca mais ficou
amuada ou se foram as pessoas que deixaram de lhe dar importância. A verdade é
que, a partir desse dia, a Sara nunca mais ficou com cara de camelo engasgado.
Em compensação, no Jardim Zoológico, há
um camelo que sempre que se zanga fica mesmo com cara de Sara amuada…
José Fanha